O garoto que não atravessava a rua

Garoto de prédio, ele nunca podia sair do quarteirão. A ordem surgiu desde pequeno. E mesmo assim, nunca sentiu falta dela. Tudo estava em seu quarteirão. A começar pela escola, onde a mãe o acompanhava até o portão. Quando ela mandava comprar leite na padaria também não era um problema. Era só ele andar cerca de trezentos metros e pronto. Nas costas do prédio, estava a padaria. Clube também não era problema, afinal o condomínio tinha tudo o que precisava. Piscina, quadra de futebol de salão, de tênis e até tinha aula de judô uma vez por semana na academia do prédio. Nas raras vezes que ficou doente, a mãe chamava o médico em casa. A consulta era mais cara, mas valia o preço. A mãe até chegava a bancar algumas festinhas no salão do prédio dos amiguinhos do filho.
Por esta proteção toda é que o pai resolveu se separar da mãe. Não suportava aquilo tudo. Mesmo assim, visitava o filho em casa. Um dia, bem que tentou coloca-lo no carro para que pudesse ver o mundo lá fora, fora da televisão e do google. Mas a tentativa foi em vão. O porteiro recebera uma quantia da mãe para não deixar jamais o pai sair do prédio com o garoto. E ela tinha conseguido uma liminar com o juiz da vara da infância para obter o direito. O filho não entendia o porquê de tudo aquilo, mas não ligava. Tinha tudo o que precisava. Sua mãe vivia praticamente o tempo inteiro em casa, o pai ia visitá-lo, assim como seus amiguinhos. Não tinha do que reclamar. Os amiguinhos tentavam contar o que havia além de seu quarteirão e o que ele estava perdendo, mas não dava ouvidos.
O tempo foi passando, os amiguinhos foram mudando. Novos garotos surgiram e alguns começaram a zoar com o jovem garoto. Mas ele não se intimidou. As aulas de judô fizeram-no se defender a ponto de a mãe ser chamada para conversar com a psicóloga da escola sobre os atos de violência que o garoto sofria.
- Eu só me defendo. É apenas contra-ataque.
Mas nem a psicóloga e nem a mãe entenderam desta forma. A psicóloga sugeriu para que o garoto mudasse de escola, mas a mãe logo rechaçou. Disse que era impossível este tipo de solução e que ele ficaria lá até se formar. Ela ainda agradeceu a todos os santos pelo fato de terem criado uma universidade no quarteirão.
- Bem-dito sejam os gênios que criam estas faculdades em todos os lugares, agradecia antes de dormir tranqüilamente “como um anjo”, como gostava de dizer.
Os anos foram se passando. O jovem garoto passou a criar gostos pessoais, mas sempre obedecendo à ordem da mãe. Comer de boca fechada, respeitar os mais velhos e nunca atravessar a rua e sair do quarteirão. Sob qualquer hipótese. Mas a vontade do garoto já adolescente passou a predominar junto com suas espinhas. Ele precisava resolver algumas dúvidas que nem o google ajudava mais. E, quando viu uma banca de jornais do outro lado da rua, sua vontade de atravessar começou a coçar. Quando sua mãe percebeu e ameaçou chorar, ele mudou de idéia e pediu ao pai que comprasse umas revistas “diferentes”.
Ao fazer 21 anos, todos os poucos amigos que restavam bem que tentavam leva-lo para o mundo, mas a obediência falava mais alto.
- Você precisa sair deste ovo de mundo.
- O mundo é muito mais que este quarteirão onde vive.
- Sabe o que tem lá fora? Mulheres, gente diferente e uma coisa que não encontrará em casa: a vida.
- Aqui eu já tenho tudo, ele respondia. E ainda sem riscos, diferente de vocês.
Foi só mais uma resposta que afastou ainda mais os últimos amigos. E foi aí que sentiu o golpe. E em um domingo de sol disse que ia até a padaria e nunca mais voltou. Todos juram que não o viram atravessar a rua, mas ninguém sabe para onde foi. A mãe, desolada, espera todos os dias no portão por um sinal ou uma carta ou um postal. Mas nada. O certo é que o ex-marido voltou a morar com ela e toda vez que ele entra no quarto do filho não consegue deixar de soltar um leve sorriso.

Comentários

FAFÁ disse…
é prender não adianta nada, quando se descobre a liberdade....
Márcia disse…
Depois de taaaanta super proteçao da mae, o garoto virou travesti e trabalha á noite imitando a Gloria Gaynor...
o_argentino disse…
boa! Como as pessoas que encontro na pós: "Cásper Líbero, junventude predial"... é um bando de nego criado em prédio ali...
Anónimo disse…
Essa é para poucos:
O garoto estava na porra do Peretz e entrou para a faculdade...
FAFÁ disse…
Hum...acho que acabo de descobrir quem é este anônimo, talvez um velho amigo conhecido, machista, mas até que legalzinho, do senhor mr.blá. Não vou mais deixar o meu marido fazer seguro com você viu???!!!
db disse…
SHOW! Este anônimo virou meu ídolo de vez!