Minha vida de catraca: a primeira vez

Olha, se me perguntassem o que eu gostaria de ser na vida, você pode ter certeza. A resposta seria qualquer coisa menos ser o que eu sou.
Não, não sou daquelas que vive reclamando do trabalho. Eu até gosto do que faço. Claro que me dá uma certa tontura de vez em quando, mas uma coisa que me incomoda bastante é a minha cor. Pode reparar. Na dúvida, me pintam de cinza. Que coisa mais sem graça! Até os corrimões já mudaram de cor, o balcão do cobrador e até os ônibus. Tudo, menos eu! Mas outra coisa que me deixa puta, são as historinhas que tenho que ouvir...
A última foi um branquela azedo. Só podia ser moleque grã-fino. Eu reparei logo que ele botou o pisante no primeiro degrau do busão Terminal Capelinha, que tem de tudo, menos uma capelinha. Quê? OK! Isto é outra história.
O moleque já pisou no ônibus querendo sair. Com mochila colada nas costas, demorou para chegar em mim. Preferiu ficar em pé ao lado das velhinhas aposentadas, aquelas que nem sabem que eu existo. Faltando pouco para o ponto, chegou perto. Senti até o talco que a mamãe passou no corpo. Ele virou para o cobrador e deu o dinheiro certinho. Pô! Sabe quem dá dinheiro certinho em busão? Só mesmo a mãe do filhinho-da-mamãe quando dá o dinheiro para o filhinho, né? Qualquer cidadão do mundo não fica segurando trinta centavos em moedinha! Mas o pior ainda estava por vir. O moleque parece que ficou com medo de mim.
- Olha, o dinheiro está aí, mas eu vou descer pela frente, tudo bem?
- Como? Você tem que passar pela catraca.
- Mas seu cobrador... Eu vou descer lá no colégio Nossa Senhora de...
Olha outro vacilo. Quem bota “seu” antes de cobrador? No mínimo foi a mesma mãe que virou pro filhinho e falou: “Para não errar, fala para o ‘seu’ cobrador o ponto que você precisa descer e ele te avisa. E se o ônibus estiver cheio, pergunta se você pode descer pela frente que é menos perigoso, tá, filhinho?”
- O que foi? Ainda falta um pouco para chegar no ponto. Você pode passar que dá tempo de sobra. E outra: vai descer bastante gente no mesmo ponto. Desculpa, mas é a primeira vez que você anda de ônibus?
- É...
Bom. Demorou, mas o moleque chegou perto de mim. Mas juro para você. Além de virgem de busão, ele era virgem de tudo. Sério! Se o cobrador não ajuda, ele não ia ter força para me girar. Pô, e o moleque já devia ter uns 16 anos. Putaqueopariu!
Se não bastasse, ele ainda quis fazer o impossível. Faltando dois pontos para descer, voltou para o cobrador, ou melhor, “seu” cobrador.
- Então, posso passar por baixo e descer pela frente?
- Como?
- É. Olha, está cheio de gente. Vai ser impossível, disse o moleque com cara de choro.
- Não, meu garoto. Você vai conseguir descer. Qualquer coisa, é só pedir licença...
Licença. Está aí uma coisa que a mãe do filhinho-da-mamãe nunca deve ter pedido na vida. Acho que é melhor ser cinza do que agüentar isto!

Comentários

Vai, vai! Tenho certeza de que o cinzão tem histórias bem cor-de-rosa para contar. Adorei!
FAFÁ disse…
imagina quantas bundas as cinzinhas já não passaram a mão.
o_argentino disse…
Gostei do modo como fez a narrativa! Contar uma história sob este ponto de vista foi muito bom...e a história em si é ótima...
clap,clap,clap,clap,clap,clap,clap!