Puta da vida

Puta da vida. Era essa a melhor forma de expressar como estava o seu sentimento com o seu marido. Aliás, naquele momento, o que sentia era que aquele ser que não saía de frente do computador era apenas o pai dos seus dois filhos.
Puta da vida, pegou o filho mais velho pelo braço e decretou: “Então nós vamos passear sozinhos. Eu já não agüento mais isso. Você não faz nada e só fica com a bunda em frente ou do computador ou da televisão.”
No carro, arrumou o espelho retrovisor para ver como estava o filho. No que o olhar cruzou, o menino de 5 anos não titubeou.
- Mãe, por que você casou com o papai?
- Ora, porque, porque, porque... porque eu gostava dele, claro.
- Então você não gosta mais?
- Gosto, sim, claro, meu filho, foi só uma força de expressão, disse ela, torcendo para que o filho perguntasse o significado de “força de expressão”. Afinal, era uma boa maneira dela mudar de assunto rapidamente e tentar ensinar alguma coisa para aquele ser de menos de um metro de altura que mal alcançava a janela do banco do carro.
- Então por que você briga tanto com ele?, emendou o garoto.
Naquele momento, o sentimento de puta da vida havia virado pó. Firmina só queria estar em um filme de ação americano. Aquele seria o momento ideal para aparecer um caminhão bem à sua frente, ela dar uma derrapada em meio a uma poça d´água, virar para a esquerda, entrar em uma ruela, destruir algumas latas de lixo (se bem que em São Paulo lata de lixo estão presas aos postes), sair por uma avenida, mas não sem antes causar uma orquestra desencontrada de buzinadas e freadas bruscas. Tudo para que não tivesse que responder ao filho. Firmina, porém, estava bem longe de Hollywood. Parada na marginal Pinheiros graças a um caminhão com o teto preso em uma ponte, arrumou o espelho retrovisor, aumentou o volume do rádio, tirou do noticiário, pegou o primeiro viaduto e voltou para casa.
Ainda no computador, Euclides teve apenas tempo de apertar o alt+tab. Não fazia ideia daquele retorno tão rápido. Pensou em perguntar se havia acontecido alguma coisa, mas viu que o filho já brincava com o irmão mais novo.
Firmina chamou Euclides no quarto e, não sem antes conferir se o filho estava perto da porta, disse, quase que sussurrando: “Agora eu entendo porque você não sai com ele para brincar”. Deu um longo beijo no marido e foi para a cozinha. Ainda puta da vida.

Comentários

FAFÁ disse…
crianças! foi-se a época em que não faziam perguntas inteligentes
o_argentino disse…
essa forma de amar enchendo o marido de esporros e brigando com ele o tempo inteiro é realmente incompreensível...eu adoro a sincerdidade e o senso de observação dos pequenos
Camila disse…
essa forma de amar de esquecer que se é pai (oumarido!) e deixar tudo nas costas da mãe (é um estereótipo, mas ainda acontece!) também é incompreensível! rs Mas sensacional o final, eu não espera nada perto disso!
O que Euclides estava vendo no computer? Adorei o texto!