Rua Augusta, 2016

O casal desce a rua Augusta. Em seus quarenta anos de idade, sentem que aquela rua já não pertencem a eles. Cabelos coloridos sobem, tatuados descem, piercings saltam sob seus olhares enquanto mais de uma dezena de camelôs vendem shots de bebida a 5 reais. “Aceitamos cartão”, gritam.
A cada 100 metros, uma fila de jovens se espremem para entrar no inferno. Ou em algum outro lugar escuro, com neon vermelho e que leva um nome diabólico. É impressionante como conseguem, em meio ao vento gelado da capital paulista, sentir o calor do local já na porta. Putas conversam na frente de boates com um sutiã para três números menores.
Definitivamente, nós estamos ficando velhos, diz ela. Total Blade Runner.
Ele sorri. Como se essa turma soubesse o que é Blade Runner, responde.
E continuam caminhando em direção ao centro, segurando a sua garrafa de água plástica. O passo não é corrido, até porque é impossível andar ligeiro. Entre pessoas andando em qualquer direção, vendedores ambulantes com direito a brigadeiro de maconha, tem ainda os inúmeros buracos nas calçadas. A rua não é uma selva. É uma loja de pets que ganharam um dia livre no parque.
Perto da Praça Roosevelt, uma sombra toma conta nas costas do casal. Ela imediatamente olha para trás.
Calma, não precisam me olhar assim.
Assim como?, responde ele.
Só porque eu sou branco não quer dizer que vou roubar vocês.
Mas quem achou isso?
Olha só, não tenho arma alguma.
Eu também não tenho, e eu sou negro, ela é negra. Somos três merdas com cores diferentes. E daí?
Aí sim. Respeito, parça.
Trocam cumprimentos.
O branco continua a falar.
Porque as pessoas desconfiam só porque eu sou branco, já olham diferente, achando que vou roubar.
Mas quem está achando isso aqui?
Todos acham. E olha só. Sou trabalhador, estou saindo do trabalho e voltando para casa.
Todos nós estamos.
Mas a minha mulher me deixou. E olha, nunca roubei ninguém. Já matei 18. E você, quantos matou?
Nenhum, diz ele. Ela continua calada.
Mas eu já matei 18, nunca fui polícia, tenho arma aqui na mochila, mas não vou fazer mal a vocês, muito menos a essa moça. Se alguém fizer mal a essa moça, aponta para a negra. Daí eu vou fazer mal a essa pessoa. Daí eu mato.
Não será necessário, tenho certeza. Agora, fica na paz, nós vamos atravessar aqui, diz ele, percebendo que já havia dado a hora daquela conversa à meia-noite.
O branco olha nos olhos do negro, percebe que ele quer ir para a Praça Roosevelt.
Eu andei muito de skate, mas naquelas ramponas. Eu fui bom, muito bom. Sabe qual sempre foi minha alegria? O skate.
E o branco, visivelmente embriagado, começa a chorar.
Olha, eu sei que vocês precisam ir, mas é verdade. O skate era minha vida, fiz muito dinheiro com skate. E agora, agora não tenho nada. Calma, calma, diz levantado a camiseta. Não estou armado, estou limpo.
O casal negro se olha rapidamente e escuta o choro do branco, ali bem em cima Radial Leste, os carros passando em seus 50km/h, a moto da pizza descendo a Augusta com o escapamento aberto, o cheiro da maconha saindo sabe-se lá de onde.
O farol para pedestre abre, o negro dá um abraço no branco e se despede. O casal negro continua sua caminhada. Agora, em silêncio.
Acho que essa rua tem lugar também para seus quarentões.


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