Inflação militar

Nada de suspensório. Nunca teve. Jeans, então, nem pensar. Era pesado, duro e gelado. Naquelas pernas brancas e finas como a do pirulito deeplink, o que vinha cocaína dentro, o tecido jeans parecia pesar mais do que o próprio peso. Ainda curtindo um calor em abril, abriu o armário, vestiu o shorts da adidas e pegou a camiseta regata com uma estampa com a caricatura do Zico no Flamengo. Não era carioca e muito menos flamenguista. Mas a camisa ele ganhou de brinde de um amiguinho da escola no Xut.

Ali, perto da avenida Juscelino Kubitschek, era o local onde ele mais gostava dos aniversários. Naquelas quadras acimentadas se fugia do clima fechado de salões de festa. Era jogar bola, jogar bola e, de vez em quando, parar para tomar uma coca ou de preferência um guaraná Brahma. Aquela garrafa cor de ferrugem era o que tinha de melhor. Taí acho muito doce. Por falta de grana, nunca fizeram o aniversário de Davi lá. Nem lá e nem outro lugar. Apenas na casa da mãe. Ah, o que foi feito de bolo peteleco, brigadeiros. Festa em casa era o único momento que tinham refrigerante. Mas não por economia. Isso faz mal e acaba com a fome. E precisa comer direito. A mãe nunca gostou de refrigerante. Nem de nada alcoólico.

Com a camiseta do Zico avisou a mãe que ia na banca de jornal. Era atravessar duas ruas. Mas só porque moravam perto de uma bifurcação. Primeiro era a Apeninos e depois a Pires da Mota. Olha para os dois lados. SEMPRE. gritava a mãe. Não importava que a rua era mão única. Ai de você se não olhasse para os dois lados. As janelas do apartamento davam vista para o caminho até a banca. E o medo dela estar espionando bela janela. Olhei para os dois lados, posso ir.

Moço, chegou o gibi novo do Heróis da TV? Moleque, é só pegar. Com a voz rouca de um cigarro que ainda fumava dentro da banca, seu Noé, apontava. Davi foi todo feliz, tocou no gibi com a alegria de quem iria tomar sorvete pela segunda vez na vida. Mas a frustração de ver o preço subir de 85 cruzados para 100 foi demais. Claro que estava acostumado com inflação, até já sabia o significado da palavra ágio, mas subir 15 cruzados era demais. Ele havia, com muito custo, guardar um pouco por semana para obter 90 cruzados. Do mês retrasado o aumento fora de 80 para 85. Mas a lógica do mercado e da economia no fim dos anos do regime militar estava cobrando o seu preço.

Davi voltou para casa de mãos abanando, olhou a Pires da Mota para os dois lados e depois a Apeninos. Ao entrar no corredor gelado do prédio, enfiou os 50 cruzados que sobraram e subiu os 13 andares torcendo ao menos para que nos dois pacotes de figurinhas da Copa União viesse jogadores que ele ainda não tinha. Ou ao menos que ele pudesse trocar 1 por 10 com os amiguinhos da escola. Roberto Cavalo, do Atlético-PR, Celso, do Goiás, Waldir Peres, da Portuguesa, escudo do América, e Leandro, do Flamengo. Só frustração. Zero de figurinha carimbada. Quem sabe a segunda. Puxa, eu fui um bom menino. Fiz tzedaká essa semana, no metrô, lembra Deus? Custa? Mascote do Internacional, Ronaldo, do Corinthians, outro Valdir Peres? Escudo do Criciúma... Mas será possível? A figurinha carimbada do Zico! Obrigado, senhor, hoje até prometo estudar para o meu bar-mitzvá.



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